A busca pela felicidade

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Quem não deseja ser feliz? Mas o que é a felicidade? Seu conceito varia entre os povos e os momentos históricos? Para debater essa questão, o NTCR-C entrevistou o filósofo Kleber Candiotto, professor na PUC-PR e doutor em Filosofia da Mente pela UFSCar.

NTCR-C: Percebemos que o tema “a busca pela felicidade” está presente na história da humanidade por milhares de anos. Muitos filósofos, inclusive, se posicionam como “hedonistas”. Como poderíamos definir o conceito de “felicidade” filosoficamente?

Kleber Candiotto: Há palavras que sabemos o que é, mas quando nos perguntam o que é, já não sabemos mais. Felicidade é uma dessas noções e, por isso, tem sido um tema caro à filosofia. Vários filósofos se debruçaram sobre o tema, mas destaco dois: Aristóteles e Epicuro.

O estagirita apresentou reflexões fundamentais sobre a felicidade. Para ele, tudo existe para uma certa finalidade e a do homem é a felicidade. Mas o que é felicidade? Sua sugestão é entender pelo que não é: felicidade é não sofrer. Assim, a virtude do homem é empregar a razão para entender como proceder em suas ações com o objetivo de evitar sofrimento, que é causado pelo contrário da virtude, que é o vício. Por isso, felicidade para Aristóteles é conciliar a virtude intelectual (saber como agir corretamente) e virtude moral (colocar em prática o agir correto, tornando-o um hábito). A virtude intelectual possibilita o homem a compreender que prazeres, honras e riquezas não são, em si, a felicidade, mas tão somente os meios necessários para conquistá-la. Se tomarmos as honras, prazeres e riquezas como finalidades de nossas ações, perderemos o controle de seu uso com os extremos excesso/ausência, o que causa sofrimento. É preciso usar os prazeres, honras e riquezas moderadamente, conhecendo o “caminho do meio”. Como esse caminho certo não é fácil de ser colocado em prática, devemos agir insistentemente neste caminho para que ele se torne um hábito. Assim, com o hábito da mediania (caminho do meio), evitaremos o sofrimento, alcançando a felicidade.

Epicuro, o mais ilustres dos hedonistas, também nos oportunizou excelentes observações sobre a felicidade. Hedonismo, como sabemos, é uma orientação filosófica que prevê o prazer como o bem maior da vida humana. No entanto, Epicuro não entendia que a felicidade é simplesmente viver os prazeres que estão ao nosso alcance. Por isso, muitos estudiosos sequer o consideram um hedonista. O prazer que ser refere Epicuro é o prazer-sabedoria, ou seja, o supremo prazer oportunizado pelo controle da mente sobre as emoções e as volições. Complementando Aristóteles, a felicidade que menciona Epicuro é o alcance do verdadeiro prazer da justa-medida que evita os excessos, dado pela vida simples, a vida propiciada pela natureza. O aspecto básico dessa vida simples, e portanto, feliz, é a saúde, mas seu alcance realmente se manifesta na questão fundamental para sabermos que somos felizes: conviver com nossos amigos. A amizade é indispensável, assim como a saúde, para a felicidade. Os demais prazeres perdem sua importância se não forem compartilhadas com amigos, pois é na amizade que podemos identificar a felicidade, quando vemos que nosso amigo se alegra com nossa felicidade, e quando nos alegramos com a felicidade de nossos amigos. Preciso do outro para saber o que é a felicidade, e isso se manifesta na amizade. Um bom alimento pode nos dar prazer, mas alcançará seu esplendor quando esta refeição for realizada na companhia de bons amigos.

NTCR-C: Onde podemos encontrar a “felicidade”?

Kleber Candiotto: A felicidade não é estática, ou seja, se a encontrarmos, não a asseguramos, pois ela está sempre em movimento. Assim, no máximo estamos junto com ela, mas se pararmos, ela fica distante de nós, pois está sempre em movimento. Assim, cada dia é um processo de busca. Aproveitando os ensinamentos de Aristóteles e Epicuro, a felicidade não pode ser um processo complexo, mas se manifesta na vida simples, na vida do equilíbrio, que se evidencia na amizade. Assim, nunca posso falar em “minha” felicidade, mas em “nossa” felicidade, pois é no outro, na amizade, que terei a efetivação da felicidade. Note-se que vida simples não significa vida de ausências de bens ou de conhecimento, por exemplo. Ao contrário, a simplicidade aqui implica  sabedoria para entender e fazer uso adequado de tudo o que está em nosso contexto, uso esse não individual, mas na companhia daqueles com que temos amizade, no sentido epicurista.

NTCR-C: Seria a “felicidade” um fim ou o processo pela busca? Ou seja, a felicidade está naquilo que vivemos enquanto a procuramos ou é aquilo que se encontra ao final desta busca?

Kleber Candiotto: Não há um final para a felicidade. O melhor é dizer que “estamos” felizes, ao invés de afirmarmos que “somos” felizes, uma vez que, como disse acima, não nos apropriamos da felicidade, mas estamos com ela, desde que façamos constantemente o processo de busca. Assim, se este processo fosse complexo, o esforço seria deveras grande e causaria sofrimento. Por isso, a via desse processo de busca é a simplicidade que se desponta na amizade.

NTCR-C: Vivemos em uma sociedade bem distinta (nas suas práticas) daquela que existia na idade média; portanto, poderíamos supor que mudanças importantes ocorreram na cultura humana. Mas, quando falamos de “felicidade”, parece que estamos tratando de um sentimento universal e acultural. Como isto seria possível?

Kleber Candiotto: Vale ressaltar que as bases são universais e racionalmente identificáveis, o que dispensa noções culturais: no sentido que mencionamos, simplicidade e amizade são noções logicamente explanáveis. Contudo, como propagou Aristóteles, precisamos conhecer as circunstâncias de nossa vida para alcançarmos o conhecimento da justa-medida. Assim, as bases da felicidade são constantes, mas sua concretização que se efetiva mediante nossas ações, demanda adaptações ao contexto de cada época e de cada cultura. Desconhecer essas bases incorre em usos extremos dos nossos prazeres e deturpações no que pensamos ser amizade. Nosso contexto contemporâneo que cultua o consumo e as aparências provoca o desconhecimento dessas bases universais.

NTCR-C: Estamos cada vez mais vivendo em um mundo “globalizado”, no sentido de informações e práticas culturais.Por exemplo: um livro lançado na Inglaterra torna-se em poucos meses um “Best seller” mundial. Seria possível supor que globalizamos, também, o conceito “felicidade”?

Kleber Candiotto: Lembrar que as bases da felicidade (vida simples e amizade, no sentido aludido acima) são universais ainda é uma questão contemporânea premente. Vale lembrar que são as bases universais e não suas realizações. Estas são contextuais, ou seja, dependem das condições de cada indivíduo. O que presenciamos é a “globalização” (prefiro “massificação”) das formas de efetivação da felicidade que segue a lógica do consumismo: a exploração máxima dos prazeres, a busca incessante de sucesso e o acúmulo desnecessário de riquezas. Na sociedade do consumismo, e não mais do consumo, como bem analisou Zigmunt Bauman, as pessoas são transformadas em mercadorias, causando corrosão das amizades e tornando as formas de vida imbuídas de incompreensível complexidade. Ora, se nosso contexto consumista dificulta a vida simples e a amizade, que são as bases universais da felicidade, podemos concluir que o que se divulga como felicidade são desvios para a mesma, incorrendo no aumento de ansiedade, frustração e desorientação, ou seja, sofrimento. Vale lembrar que esse sofrimento também é fonte de mais consumismo: a indústria farmacêutica que o diga!

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